A Grécia sempre na vanguarda
Aprendemos nos
bancos da escola que a Grécia é o berço da Filosofia que deu origem à chamada
Civilização Ocidental, baseada no conhecimento, na competência e no poder da
razão, defensora do sucesso assente no mérito, no saber e na iniciativa privada.
A História da Filosofia assinala um conjunto de filósofos gregos como os
maiores vultos do pensamento que traçaram a matriz da nossa cultura.
Nunca fui à
Grécia. Os livros referem um país montanhoso, pobre, com uma baixa percentagem
de solo arável, de clima quente e seco ou temperado, próprio da região
mediterrânica, com muito sol, mar e praias de sonho.
Friedrich
Nietzsche, filósofo alemão do séc. XIX (1844-1900), estudioso da cultura
grega, considerava que os gregos eram infelizes e por isso criaram a mitologia
e a arte trágica para aliviar a angústia
da existência. Duvido muito. Não sei se os gregos se sentiam mais infelizes e
angustiados do que os outros povos. Toda a humanidade, desde sempre, se
questionou e se questiona pelo sentido da existência. Talvez os gregos sentissem
esse problema com mais intensidade, nos primórdios da civilização, por viverem
no “paraíso” mas se sentirem no “inferno” porque tinham e têm um clima
excelente, um sol brilhante e esplendoroso, um céu limpo e infinito, numa terra
rodeada de águas cristalinas, mas não tinham, ainda, sabedoria suficiente para
explicar a natureza, esse mundo tão belo, nem conhecimento (científico) que
permitisse curar as doenças e suavizar o sofrimento e a fragilidade humana.
Como é que um ser fraco, doente (como o próprio Nietzsche) e de vida efémera
poderia gozar os prazeres da vida e da natureza sempre bela e brilhante? À
máxima luz e beleza exterior do clima grego, imensamente claro e radiante,
opunha-se, no espírito, uma enorme escuridão interior de ignorância, de
angústia e de impotência. (a primeira questão da filosofia grega foi,
precisamente: “o que é isto, a natureza?” – “Τί εστί φύσεος;”)
Esta oposição
entre a luz e as trevas, a felicidade e a angústia ou o bem-estar e o
sofrimento é uma questão essencial da existência humana desde o tempo
primordial bíblico dos “Génesis” que apresenta algum paralelismo na maneira de
ser dos povos da região mediterrânica, mais alegre e permissiva mas desleixada
e pobre, e na dos povos do norte da Europa mais sombria e triste mas também mais
exigente, rigorosa e rica.
Os dados
biográficos de Nietzsche
dão-nos uma imagem semelhante: depois da morte do pai, aos cinco anos,
Nietzsche passou a viver num ambiente marcadamente feminino na companhia da
mãe, da irmã, da avó e três tias, rodeado de mimo (o sol radiante da infância,
o aconchego do paraíso). O miúdo efeminado não ficou, com certeza, bem
preparado para enfrentar, na vida adulta, a dureza dos problemas (o trabalho, a
doença e a responsabilidade: os espinhos e abrolhos fora do paraíso), de forma
viril. Muito menos para seguir a vida religiosa (pastor protestante), de acordo
com os desejos de sua mãe. Sendo uma pessoa extremamente emotiva e dada à
sensualidade, sentia, por outro lado, uma grande angústia (e infelicidade) por
causa da saúde frágil, debilitada pela sífilis,
que lhe causava muitos dissabores.
Hoje a Grécia é
o protótipo da crise, tal como antes, o da civilização. Que diria Nietzsche
hoje? Que o problema é a angústia da existência como na Antiguidade? Que a vida
é um absurdo?
Que é preciso restaurar o espírito da tragédia,
como solução, apelando à
arte apolínea e dionisíaca?
Não deixa de ser
estranho que Nietzsche tenha encontrado a solução para essa angústia de
existência, que era, segundo ele, a causa da crise social e cultural do seu
tempo, na antiga Tragédia Grega de Ésquilo (525/524 a. C.-456/455 a. C.) e
Sófocles (497/496 a. C.-406/405 a. C.), a mais de vinte séculos de distância.
Não só não encontrou no seu tempo qualquer solução como ainda considerou que
toda a cultura ocidental desde Sócrates (469-399 a. C.) e Platão (428/427-348/347)
até então era negativa e decadente. Esta fuga para um passado longínquo, para alguns,
uma marca do Romantismo, mais parece uma infantilidade, um sinal de alienação e
de incapacidade em enfrentar os reais problemas da vida.
A crise actual é,
apenas, uma simples questão de angústia de existência? Na minha opinião é,
fundamentalmente, um problema moral e de valores. Não é um problema económico e
financeiro. Nunca a humanidade teve tanta capacidade de produzir riqueza como
hoje. Não será, afinal esta crise, o retrato fiel da vida e da filosofia de
Nietzsche?
Longe de ser uma
solução para a crise, a filosofia do pessimismo trágico, da embriaguez
dionisíaca, da crítica à moral, da rejeição do Cristianismo, do irracionalismo,
etc., não é antes a causa da crise, o reflexo do facilitismo, da impunidade, da
corrupção e da imoralidade da generalidade dos cidadãos e de grande parte da
classe política que tem marcado as grandes opções, as estratégias e os destinos
dos povos nos últimos anos e nos colocaram no inferno?
Aquilo a que
Nietzsche chama a embriaguez dionisíaca não é mais do que a apologia da
alienação e da irresponsabilidade. Para Nietzsche a vida não tem qualquer
sentido, é um completo absurdo. Nietzsche não reconhece valores, ideais ou
razões que motivem e justifiquem a existência. “Melhor fora não ter nascido” –
diz. Se a vida não tem explicação nem pode ser minimamente aceitável, qual é a
atitude a tomar? Só pode ser, segundo ele a criação artística na perspectiva da
música, a aceitação da vida pela óptica da arte, única forma de atingir a
verdadeira realidade (a metafísica do artista). No fundo, Nietzsche concorda,
em absoluto, com o que diz o povo: “Quem canta seus males espanta”. Se a
tradição filosófica sempre definiu o ser humano como animal racional, Nietzsche
despreza completamente a parte racional e valoriza, somente, a parte animal, o
corpo, a sensibilidade, a estética. Por isso, tudo o que seja derivado da razão,
como normas morais, prescrições, verticalidade, imposições, rigor, etc., é
completamente rejeitado e considerado decadente, negativo, anti-valor,
retrógrado, etc. Só o agradável é sinónimo de bom, tal como o sensível e,
principalmente, o sensual e todo o encantamento provocado pela música, a música
popular, que faça esquecer o horror, que é existir. Se a existência é um
contínuo suplício é preciso suavizá-la com alguma doçura que esteja ao alcance
do corpo e da sensibilidade. Esse bálsamo, segundo Nietzsche, está na arte
trágica que resulta da interferência de duas forças instintivas opostas,
simbolizadas pelas figuras míticas de Apolo e Dionísio. Só a arte trágica
permite “dizer sim à vida” apesar do absurdo. Apolo é o deus das artes
plásticas, das imagens belas, do sonho, da imaginação, da harmonia, etc.,
enquanto Dionísio é o deus da embriaguez, do desmedido, do caótico e do uno (do
esquecimento de si). Nietzsche, dotado e apaixonado pela música, pela fantasia
e pela arte, mas, ao mesmo tempo, aterrorizado pela vida porque só lhe dá
angústia e sofrimento, só encontra uma solução: agarrar-se ao piano, tocar e cantar
até ao delírio; beber, fumar e excitar-se para lá dos limites, até se esquecer
que existe. Temos aqui uma imagem do alienado compulsivo, do existencialista
primário, sem projectos e sem consciência para não sentir angústia.
Os “hippies” da
década de 60 do séc. passado são a imagem de Nietzsche num contexto mais alegre
e feliz. Enquanto Nietzsche vivia numa angústia atroz e implacável, minado pela
sífilis, sem uma réstia de esperança, rejeitando tudo o que fosse produto da
razão, os dionisíacos do séc. XX já sentem os efeitos da felicidade industrial,
do poder e do conforto da tecnologia, da medicina, do desenvolvimento e da
cultura de massas proporcionado pela Ciência que Nietzsche tanto abominava. Estes
dionisíacos amadores do séc. XX sentiam-se uns felizardos, livres como pássaros
fora da gaiola, adolescentes em férias, sem deveres, sem trabalho, sem horário,
sem responsabilidades porque os pais lhes pagavam a mesada, a economia era
próspera e havia quem produzisse para que eles gozassem e satisfizessem os
apetites e os instintos, livres de todas as angústias, de doenças
desconfortáveis e de outras situações resolvidas pela pílula e pelos
contraceptivos.
Nos nossos dias
já não temos os “hippies” ao sabor do vento, a defender o amor livre (make love, not war) no meio da selva, a
protestar contra a guerra do Vietname, a deambular numa autocaravana de mil
cores, sem destino, de cabelos compridos e barba desgrenhada, a cantar e a tocar
viola. Em vez disso, temos os “hippies” refinados e profissionais com aparência
de gente séria, que não têm só “um amor e uma cabana” mas se instalam em resorts de luxo ou condomínios bem
fechados na companhia de beldades de eleição, em orgias
delirantes e diabólicas. Nos intervalos, passada a ressaca, estes
dionisíacos de pacotilha ocupam as cadeiras do poder, na política, na economia
etc., e prometem o bem estar, o progressismo e a felicidade, mas só sabem criar
a desordem,
a crise e o caos. Continuam a ser como adolescentes em férias, ingénuos, e
incompetentes que vivem como parasitas do povo a quem prometem a igualdade e a
democracia sexual, como a coisa mais importante da vida, sob todas as formas,
estilos e géneros, com um ar grave e sério, como quem comanda os supremos
destinos dos povos de forma honesta, com direito a todas as mordomias e
privilégios.
É este o retrato
da generalidade da classe política europeia, sem princípios, sem projectos e
sem responsabilidades, que não sabe o que é trabalho árduo, porque nunca fez
nada na vida e passou todo o tempo, desde a adolescência, em jogos de política
partidária, nos corredores do poder, aproveitando os intervalos das férias, das
farras e das diversões. O importante é gozar, aproveitar a vida e nada de
imposições, de normas, etc. o que interessa é em ganhar votos a todo o custo
independentemente de se cumprirem ou não as promessas e de se terem ou não as contas
em dia. O mundo atolado em dívidas é a imagem desta perspetiva irracional da
existência. Quem vier depois que pague. É esta a classe política que tem
conduzido os destinos dos povos, nas últimas décadas, para o descalabro. A
Grécia é o protótipo deste caos político e económico, segundo os ecos que de lá
vêm, onde a corrupção e a irresponsabilidade não têm limites. Parece-me o
exemplo mais perfeito do existencialismo de Nietzsche. Os países mais pobres e
sem recursos são as primeiras vítimas.
Estes “hippies”
refinados já não precisam da arte apolíneo-dionisíaca para nada, de recorrer à
imaginação, e às imagens belas. Eles têm acesso directo à imagem e ao corpo, ao
delírio e à excitação sem limites. A angústia (qual angústia?) é para o povo
que tem que suportar a enorme carga de impostos, a austeridade e a penúria
provocadas pelo desmando e incompetência desta classe de agiotas, abutres e
sanguessugas.
A matriz da
racionalidade, da competência, do rigor e da exigência que estava na base da civilização
ocidental, desde a antiguidade, deu lugar à matriz da irracionalidade, do
instinto, da volúpia e da irresponsabilidade. Era, precisamente, esta a tese
fundamental de Nietzsche: a causa da crise do seu tempo era a filosofia do
racionalismo socrático-platónico que tinha dominado a cultura ocidental desde o
séc. V a. C. sob a forma do “optimismo teórico”, “socratismo estético” ou “intelectualismo
ético” que confiava na razão e no indivíduo (princípio da individuação) e criava
a ilusão da felicidade. Daí a necessidade de instaurar o espírito da tragédia
grega, a arte apolíneo-dionisíaca e a magia do instinto como uma pulsão natural
libertadora.
Na senda do dionisíaco,
o reino da formiga deu lugar ao da cigarra. Daí a situação existencial de
crise, em que vivemos, marcada pelo desemprego, pela ausência de valores, pelo
materialismo hedonista, pelo lucro fácil, pela recessão e pela falência diária
de empresas. É o retrato fiel da embriaguez dionisíaca colectiva. A política e
a economia europeias são a imagem destes “valores” dominantes: a velha Europa é
como uma prostituta falida, em fim de carreira, usada, gasta, velha, vivida,
infectada e sem poder de sedução, que quer continuar a dominar o prostíbulo à
custa de grandes e avultados esforços de maquilhagem, do “milagre” da cosmética
e de grandes operações plásticas. A sua improdutividade reflecte-se na ausência
de futuro, na esterilidade das soluções e na impotência generalizada para
renovar a vida, as instituições e a credibilidade. Neste circo de “Sexo, drogas
e rock & rol” em que vivemos, as tentativas de reanimação, as grandes
“injecções” dos milhões do FMI, do BCE e de outras entidades, supostamente
poderosas, são como grandes doses de viagra que já não produzem efeito, devido
à astenia generalizada, à desnutrição e à podridão que ameaça todo o organismo.
Temos diante de nós a imagem de Nietzsche, no fim da vida, doente, fraco e
demente, agarrado a um cavalo prostrado na rua, maltratado, moribundo e sem
forças, incapaz de socorrer e de reanimar. Também, hoje, assistimos,
hipocritamente, a grandes preocupações ambientais em cimeiras mundiais,
jornadas e acções de defesa dos animais e das plantas, enquanto o ser humano é
desprotegido desde o nascimento, nos seus direitos e na sua dignidade ao longo
da sua existência.
Estamos a chegar
ao verdadeiro niilismo, ao zero absoluto de tudo o que pode sustentar a vida. É
necessária uma verdadeira Vontade de Poder. Está na hora de desencadear o
Eterno Retorno para que uma nova civilização renasça, como Fénix, das cinzas do
inferno em que temos vivido. Chegou a hora de governar o mundo com sabedoria,
cultura, conhecimento e com ética que permita ao ser humano tomar consciência
de que o Éden é impossível, mas desejável dentro dos nossos limites, mas onde
sempre estará o fruto proibido.