quarta-feira, 20 de junho de 2012

Grécia – a crise e pessimismo trágico


A Grécia sempre na vanguarda
Aprendemos nos bancos da escola que a Grécia é o berço da Filosofia que deu origem à chamada Civilização Ocidental, baseada no conhecimento, na competência e no poder da razão, defensora do sucesso assente no mérito, no saber e na iniciativa privada. A História da Filosofia assinala um conjunto de filósofos gregos como os maiores vultos do pensamento que traçaram a matriz da nossa cultura.
Nunca fui à Grécia. Os livros referem um país montanhoso, pobre, com uma baixa percentagem de solo arável, de clima quente e seco ou temperado, próprio da região mediterrânica, com muito sol, mar e praias de sonho.
Friedrich Nietzsche, filósofo alemão do séc. XIX (1844-1900), estudioso da cultura grega, considerava que os gregos eram infelizes e por isso criaram a mitologia e a arte trágica para aliviar a angústia da existência. Duvido muito. Não sei se os gregos se sentiam mais infelizes e angustiados do que os outros povos. Toda a humanidade, desde sempre, se questionou e se questiona pelo sentido da existência. Talvez os gregos sentissem esse problema com mais intensidade, nos primórdios da civilização, por viverem no “paraíso” mas se sentirem no “inferno” porque tinham e têm um clima excelente, um sol brilhante e esplendoroso, um céu limpo e infinito, numa terra rodeada de águas cristalinas, mas não tinham, ainda, sabedoria suficiente para explicar a natureza, esse mundo tão belo, nem conhecimento (científico) que permitisse curar as doenças e suavizar o sofrimento e a fragilidade humana. Como é que um ser fraco, doente (como o próprio Nietzsche) e de vida efémera poderia gozar os prazeres da vida e da natureza sempre bela e brilhante? À máxima luz e beleza exterior do clima grego, imensamente claro e radiante, opunha-se, no espírito, uma enorme escuridão interior de ignorância, de angústia e de impotência. (a primeira questão da filosofia grega foi, precisamente: “o que é isto, a natureza?” – “Τί εστί φύσεος;”)
Esta oposição entre a luz e as trevas, a felicidade e a angústia ou o bem-estar e o sofrimento é uma questão essencial da existência humana desde o tempo primordial bíblico dos “Génesis” que apresenta algum paralelismo na maneira de ser dos povos da região mediterrânica, mais alegre e permissiva mas desleixada e pobre, e na dos povos do norte da Europa mais sombria e triste mas também mais exigente, rigorosa e rica.
Os dados biográficos de Nietzsche dão-nos uma imagem semelhante: depois da morte do pai, aos cinco anos, Nietzsche passou a viver num ambiente marcadamente feminino na companhia da mãe, da irmã, da avó e três tias, rodeado de mimo (o sol radiante da infância, o aconchego do paraíso). O miúdo efeminado não ficou, com certeza, bem preparado para enfrentar, na vida adulta, a dureza dos problemas (o trabalho, a doença e a responsabilidade: os espinhos e abrolhos fora do paraíso), de forma viril. Muito menos para seguir a vida religiosa (pastor protestante), de acordo com os desejos de sua mãe. Sendo uma pessoa extremamente emotiva e dada à sensualidade, sentia, por outro lado, uma grande angústia (e infelicidade) por causa da saúde frágil, debilitada pela sífilis, que lhe causava muitos dissabores.
Hoje a Grécia é o protótipo da crise, tal como antes, o da civilização. Que diria Nietzsche hoje? Que o problema é a angústia da existência como na Antiguidade? Que a vida é um absurdo? Que é preciso restaurar o espírito da tragédia, como solução, apelando à arte apolínea e dionisíaca?
Não deixa de ser estranho que Nietzsche tenha encontrado a solução para essa angústia de existência, que era, segundo ele, a causa da crise social e cultural do seu tempo, na antiga Tragédia Grega de Ésquilo (525/524 a. C.-456/455 a. C.) e Sófocles (497/496 a. C.-406/405 a. C.), a mais de vinte séculos de distância. Não só não encontrou no seu tempo qualquer solução como ainda considerou que toda a cultura ocidental desde Sócrates (469-399 a. C.) e Platão (428/427-348/347) até então era negativa e decadente. Esta fuga para um passado longínquo, para alguns, uma marca do Romantismo, mais parece uma infantilidade, um sinal de alienação e de incapacidade em enfrentar os reais problemas da vida.
A crise actual é, apenas, uma simples questão de angústia de existência? Na minha opinião é, fundamentalmente, um problema moral e de valores. Não é um problema económico e financeiro. Nunca a humanidade teve tanta capacidade de produzir riqueza como hoje. Não será, afinal esta crise, o retrato fiel da vida e da filosofia de Nietzsche?
Longe de ser uma solução para a crise, a filosofia do pessimismo trágico, da embriaguez dionisíaca, da crítica à moral, da rejeição do Cristianismo, do irracionalismo, etc., não é antes a causa da crise, o reflexo do facilitismo, da impunidade, da corrupção e da imoralidade da generalidade dos cidadãos e de grande parte da classe política que tem marcado as grandes opções, as estratégias e os destinos dos povos nos últimos anos e nos colocaram no inferno?
Aquilo a que Nietzsche chama a embriaguez dionisíaca não é mais do que a apologia da alienação e da irresponsabilidade. Para Nietzsche a vida não tem qualquer sentido, é um completo absurdo. Nietzsche não reconhece valores, ideais ou razões que motivem e justifiquem a existência. “Melhor fora não ter nascido” – diz. Se a vida não tem explicação nem pode ser minimamente aceitável, qual é a atitude a tomar? Só pode ser, segundo ele a criação artística na perspectiva da música, a aceitação da vida pela óptica da arte, única forma de atingir a verdadeira realidade (a metafísica do artista). No fundo, Nietzsche concorda, em absoluto, com o que diz o povo: “Quem canta seus males espanta”. Se a tradição filosófica sempre definiu o ser humano como animal racional, Nietzsche despreza completamente a parte racional e valoriza, somente, a parte animal, o corpo, a sensibilidade, a estética. Por isso, tudo o que seja derivado da razão, como normas morais, prescrições, verticalidade, imposições, rigor, etc., é completamente rejeitado e considerado decadente, negativo, anti-valor, retrógrado, etc. Só o agradável é sinónimo de bom, tal como o sensível e, principalmente, o sensual e todo o encantamento provocado pela música, a música popular, que faça esquecer o horror, que é existir. Se a existência é um contínuo suplício é preciso suavizá-la com alguma doçura que esteja ao alcance do corpo e da sensibilidade. Esse bálsamo, segundo Nietzsche, está na arte trágica que resulta da interferência de duas forças instintivas opostas, simbolizadas pelas figuras míticas de Apolo e Dionísio. Só a arte trágica permite “dizer sim à vida” apesar do absurdo. Apolo é o deus das artes plásticas, das imagens belas, do sonho, da imaginação, da harmonia, etc., enquanto Dionísio é o deus da embriaguez, do desmedido, do caótico e do uno (do esquecimento de si). Nietzsche, dotado e apaixonado pela música, pela fantasia e pela arte, mas, ao mesmo tempo, aterrorizado pela vida porque só lhe dá angústia e sofrimento, só encontra uma solução: agarrar-se ao piano, tocar e cantar até ao delírio; beber, fumar e excitar-se para lá dos limites, até se esquecer que existe. Temos aqui uma imagem do alienado compulsivo, do existencialista primário, sem projectos e sem consciência para não sentir angústia.
Os “hippies” da década de 60 do séc. passado são a imagem de Nietzsche num contexto mais alegre e feliz. Enquanto Nietzsche vivia numa angústia atroz e implacável, minado pela sífilis, sem uma réstia de esperança, rejeitando tudo o que fosse produto da razão, os dionisíacos do séc. XX já sentem os efeitos da felicidade industrial, do poder e do conforto da tecnologia, da medicina, do desenvolvimento e da cultura de massas proporcionado pela Ciência que Nietzsche tanto abominava. Estes dionisíacos amadores do séc. XX sentiam-se uns felizardos, livres como pássaros fora da gaiola, adolescentes em férias, sem deveres, sem trabalho, sem horário, sem responsabilidades porque os pais lhes pagavam a mesada, a economia era próspera e havia quem produzisse para que eles gozassem e satisfizessem os apetites e os instintos, livres de todas as angústias, de doenças desconfortáveis e de outras situações resolvidas pela pílula e pelos contraceptivos.
Nos nossos dias já não temos os “hippies” ao sabor do vento, a defender o amor livre (make love, not war) no meio da selva, a protestar contra a guerra do Vietname, a deambular numa autocaravana de mil cores, sem destino, de cabelos compridos e barba desgrenhada, a cantar e a tocar viola. Em vez disso, temos os “hippies” refinados e profissionais com aparência de gente séria, que não têm só “um amor e uma cabana” mas se instalam em resorts de luxo ou condomínios bem fechados na companhia de beldades de eleição, em orgias delirantes e diabólicas. Nos intervalos, passada a ressaca, estes dionisíacos de pacotilha ocupam as cadeiras do poder, na política, na economia etc., e prometem o bem estar, o progressismo e a felicidade, mas só sabem criar a desordem, a crise e o caos. Continuam a ser como adolescentes em férias, ingénuos, e incompetentes que vivem como parasitas do povo a quem prometem a igualdade e a democracia sexual, como a coisa mais importante da vida, sob todas as formas, estilos e géneros, com um ar grave e sério, como quem comanda os supremos destinos dos povos de forma honesta, com direito a todas as mordomias e privilégios.
É este o retrato da generalidade da classe política europeia, sem princípios, sem projectos e sem responsabilidades, que não sabe o que é trabalho árduo, porque nunca fez nada na vida e passou todo o tempo, desde a adolescência, em jogos de política partidária, nos corredores do poder, aproveitando os intervalos das férias, das farras e das diversões. O importante é gozar, aproveitar a vida e nada de imposições, de normas, etc. o que interessa é em ganhar votos a todo o custo independentemente de se cumprirem ou não as promessas e de se terem ou não as contas em dia. O mundo atolado em dívidas é a imagem desta perspetiva irracional da existência. Quem vier depois que pague. É esta a classe política que tem conduzido os destinos dos povos, nas últimas décadas, para o descalabro. A Grécia é o protótipo deste caos político e económico, segundo os ecos que de lá vêm, onde a corrupção e a irresponsabilidade não têm limites. Parece-me o exemplo mais perfeito do existencialismo de Nietzsche. Os países mais pobres e sem recursos são as primeiras vítimas.
Estes “hippies” refinados já não precisam da arte apolíneo-dionisíaca para nada, de recorrer à imaginação, e às imagens belas. Eles têm acesso directo à imagem e ao corpo, ao delírio e à excitação sem limites. A angústia (qual angústia?) é para o povo que tem que suportar a enorme carga de impostos, a austeridade e a penúria provocadas pelo desmando e incompetência desta classe de agiotas, abutres e sanguessugas.
A matriz da racionalidade, da competência, do rigor e da exigência que estava na base da civilização ocidental, desde a antiguidade, deu lugar à matriz da irracionalidade, do instinto, da volúpia e da irresponsabilidade. Era, precisamente, esta a tese fundamental de Nietzsche: a causa da crise do seu tempo era a filosofia do racionalismo socrático-platónico que tinha dominado a cultura ocidental desde o séc. V a. C. sob a forma do “optimismo teórico”, “socratismo estético” ou “intelectualismo ético” que confiava na razão e no indivíduo (princípio da individuação) e criava a ilusão da felicidade. Daí a necessidade de instaurar o espírito da tragédia grega, a arte apolíneo-dionisíaca e a magia do instinto como uma pulsão natural libertadora.
Na senda do dionisíaco, o reino da formiga deu lugar ao da cigarra. Daí a situação existencial de crise, em que vivemos, marcada pelo desemprego, pela ausência de valores, pelo materialismo hedonista, pelo lucro fácil, pela recessão e pela falência diária de empresas. É o retrato fiel da embriaguez dionisíaca colectiva. A política e a economia europeias são a imagem destes “valores” dominantes: a velha Europa é como uma prostituta falida, em fim de carreira, usada, gasta, velha, vivida, infectada e sem poder de sedução, que quer continuar a dominar o prostíbulo à custa de grandes e avultados esforços de maquilhagem, do “milagre” da cosmética e de grandes operações plásticas. A sua improdutividade reflecte-se na ausência de futuro, na esterilidade das soluções e na impotência generalizada para renovar a vida, as instituições e a credibilidade. Neste circo de “Sexo, drogas e rock & rol” em que vivemos, as tentativas de reanimação, as grandes “injecções” dos milhões do FMI, do BCE e de outras entidades, supostamente poderosas, são como grandes doses de viagra que já não produzem efeito, devido à astenia generalizada, à desnutrição e à podridão que ameaça todo o organismo. Temos diante de nós a imagem de Nietzsche, no fim da vida, doente, fraco e demente, agarrado a um cavalo prostrado na rua, maltratado, moribundo e sem forças, incapaz de socorrer e de reanimar. Também, hoje, assistimos, hipocritamente, a grandes preocupações ambientais em cimeiras mundiais, jornadas e acções de defesa dos animais e das plantas, enquanto o ser humano é desprotegido desde o nascimento, nos seus direitos e na sua dignidade ao longo da sua existência.
Estamos a chegar ao verdadeiro niilismo, ao zero absoluto de tudo o que pode sustentar a vida. É necessária uma verdadeira Vontade de Poder. Está na hora de desencadear o Eterno Retorno para que uma nova civilização renasça, como Fénix, das cinzas do inferno em que temos vivido. Chegou a hora de governar o mundo com sabedoria, cultura, conhecimento e com ética que permita ao ser humano tomar consciência de que o Éden é impossível, mas desejável dentro dos nossos limites, mas onde sempre estará o fruto proibido.