sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A passagem dos criminosos

De vez em quando vemos e ouvimos certas pessoas muito incomodadas e preocupadas, a protestar e a reclamar contra a passagem de uns quantos alegados criminosos, pelos ares de Portugal a caminho dos Estados Unidos. Já parece uma obsessão. Depois calam-se, esquecem-se como se nada de grave tivesse acontecido e como se deixassem de existir. É claro que ninguém gosta de ver criminosos ao pé da porta. Mas que mal tem, quando nem sequer fomos ameaçados ou prejudicados por tais criaturas? Questão de princípio, de justiça ou de soberania nacional – dirão. Dos milhares de aviões que todos os dias atravessam o nosso espaço, quem imagina quantos criminosos seguem a bordo sem que ninguém se preocupe com isso?
Em vez de se preocuparem com criminosos, em voos secretos que ninguém viu, não seria preferível essas pessoas preocuparem-se com os criminosos que vemos todos os dias, nos entram em casa, nos roubam, nos tiram a dignidade e nos ofendem nos nossos mais elementares direitos?
Ninguém fala, não oiço nem vejo essas mesmas pessoas incomodadas, a protestar contra os criminosos que são directamente responsáveis por esta crise, esta dívida soberana e esta desgovernação em que estamos metidos.
Ninguém protesta contra os criminosos que nos roubam parte dos salários que ganhamos honestamente.
Ninguém se incomoda com os criminosos que nos prometeram igualdade, milhares de empregos e progressismo mas só criaram desigualdade, desemprego e miséria. A maioria da população sobrevive com salários mínimos ridículos comparados com a maior parte dos países da Europa. Como é possível fazer face ao custo de vida cada vez mais difícil com os combustíveis a um preço insuportável enquanto esses criminosos, com fabulosos vencimentos e todo o tipo de mordomias ficam imunes aos sacrifícios que impõem aos outros.
Ninguém fala contra os criminosos que prometeram saúde tendencialmente gratuita, o Serviço Nacional de Saúde, mas nos sobrecarregam com taxas cada vez mais pesadas e custos sempre mais elevados em todo o tipo de serviços de saúde.
Ninguém protesta contra os criminosos que se intitulam paladinos do chamado “Estado Social” mas nos cortam, até, no abono de família que já vêm do tempo do Salazar, do tempo do fascismo. Afinal, quem é mais criminoso e mais fascista?
Ninguém se incomoda com os criminosos que nos têm mentido e enganado, dizendo que a crise não iria chegar, que a nossa economia iria resistir, depois, que já tinha passado e que já havia sinais de recuperação, que não iria haver aumento de impostos e que não seriam necessárias medidas de austeridade e agora nos impuseram pesados sacrifícios em nome do bem comum e para vencer a crise, enquanto eles arranjam formas de escapar a esta rigorosa austeridade.
Ninguém se incomoda com os criminosos cujo nome está incluído em inúmeros processos judiciais que nunca foram verdadeiramente esclarecidos, porque permitem que a Justiça esteja fortemente politizada em vez de ser independente, célere e imparcial.
Ninguém se incomoda com os criminosos que têm feito uma autêntica gestão danosa do património público vendendo imóveis indubitavelmente necessários ao funcionamento das instituições e de todos os serviços públicos que asseguram o funcionamento da vida democrática, ficando depois a pagar rendas exorbitantes às entidades privadas que os adquiriram. Qual é o cidadão, minimamente sensato, que vende a sua casa para saldar as dívidas ficando depois a pagar uma renda astronómica e incomportável para as suas possibilidades?
Ninguém se incomoda com os criminosos que degradaram os valores do humanismo e da moral com a aprovação de leis iníquas que são autênticos atentados contra a dignidade e os direitos da humanidade.
Ninguém se incomoda com os criminosos que hipotecaram as gerações futuras com dívidas cada vez mais elevadas, com desemprego, com desigualdade, com injustiça, com corrupção e todo o tipo de calamidades.
Os tais voos secretos que transportaram os alegados criminosos terão deixado apenas um rasto de CO2 na atmosfera enquanto estes outros criminosos deixaram um rasto de destruição e de morte que perdurará por muitas gerações. Mas deles ninguém fala.